quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Quando eu era pequeno nada fazia muito sentido lá em casa. Os meus pais nunca falavam, nem comigo nem um com o outro. Se se dirigissem um ao outro era aos gritos. Sentiam-se aliviados quando eu me fechava no meu quarto durante horas a brincar sózinho, o meu pai gritava quando eu fazia algum disparate - comigo e com a minha mãe, que segundo ele era a culpada por eu ser o desastre que era, e a minha mãe mostrava uma irritação enorme se eu perguntava simplesmente "o que é o jantar?" ou "posso ír brincar lá fora?". Nunca os entendi e nunca soube porque eles nunca me tentaram entender a mim. Não me lembro de os meus pais alguma vez me terem perguntado como tinha corrido o dia na escola, o que estava a aprender nas aulas de Matemática ou Biologia (as minhas disciplinas preferidas!) ou de mostrarem qualquer tipo de interesse nos meus hobbys. "Quando crescer quero ensinar matemática", dizia-
-lhes. Nenhuma reacção, nenhuma expressão no rosto deles que fosse sinal de interesse ou orgulho, nada. Um silêncio desencorajador.
Os meus pais foram sempre dois seres estranhos que viviam debaixo do mesmo tecto que eu. Se para muitas crianças o lar é onde se podem sentir seguras, para mim estar em casa metia medo e fazia-me sentir perdido. Mais medo do que o escuro do quarto depois das luzes se apagarem e do meu pai me dizer, com uma autoridade fria "hora de dormir, agora caluda." Como se alguma vez se ouvisse algum som naquela casa! Para além de gritos do meu pai e choros da minha mãe, o silêncio pesava o ar constantemente... A minha mãe tinha sempre uma expressão no rosto de quem está com medo, ou com dores, ou com nojo. Tinha a mania das limpezas e um dia inteiro a arrumar era um paraíso para ela. Pedia sempre desculpas pela desarrumação se alguém batesse à porta inesperadamente e apressava-se a lavar as mãos com sabonete e água a escaldar depois de tocar fosse no que fosse. O meu pai, que também gostava de manter uma ordem quase militar, ria-se dela e fazia comentários maldosos sobre aquelas manias. Senti pena dela até ter chegado a uma idade em que aprendi que ela devia ter mandado o meu pai dar uma curva e ter feito um esforço para me proporcionar uma infância da qual me pudesse orgulhar. Não é isso que mães deviam fazer? Mas isso nunca aconteceu. Os meus pais detestavam-se mutuamente e quem melhor para levar com as culpas dos erros deles do que o filho que não se pode defender contra os dois adultos que mais o intimidam?
Acreditava que quando crescesse e me podesse tornar independente que fosse ser mais feliz, mas houve algo que os meus pais conseguiram fazer bem durante a minha infância, que foi tornar-me no homenzinho medroso e incapaz que sou hoje. A culpa é deles. Nunca me quiseram ouvir, nunca me apoiaram, nunca me contaram histórias antes de dormir, nunca mostraram vontade em saber quem o filho deles era.
Quando eu tinha 14 anos comecei a escrever um diário. Sempre achei que diários eram coisas de raparigas, com páginas cor-de-rosa e cheirinho a gomas de morango, mas arranjei um bloquinho no meu entender mais apropriado a mim e ele tornou-se o meu melhor amigo. Chamava-o de Kent (tinha ouvido algo sobre o condado de Kent e gostei do nome)e contava-lhe tudo. Sem nunca me questionar ou apontar um dedo, ele esteve sempre lá para mim. Ás vezes imaginava que o Kent falava comigo, que me respondia às minhas incertezas e que me punha uma mão no ombro. Tudo o que eu desejava receber dos meus pais e nunca tinha recebido, imaginava receber do meu diário. Do Kent, o meu melhor amigo. Imaginava... até ao dia em que me deixei levar por uma frustração enorme e rasguei todas as páginas e queimei-as. Estava furioso, farto de falar com ele, de lhe confiar segredos e emoções sem receber nada em troca. Cansado da forma como ele me fazia sentir melhor, mas no final nada mudava. Dar, dar e dar sem nunca receber. Fartei-me! Lembro-me de ter roubado o isqueiro do meu pai, de ter tirado uma garrafa de álcool etílico do armário da casa-de-banho onde a minha mãe guardava uma farmácia capaz de matar um elefante, e de me ter fechado no meu quarto. Encharquei as folhas do diário em álcool e queimei-as. Foi um drama, ía pegando fogo à casa e os meu pai gritou com a minha mãe dizendo que a culpa era toda dela por ter um filho que só causava problemas... "já viste bem o teu filho? a culpa é tua, sempre a deixá-lo fazer o que quer!" Nunca percebi porque é que ele dizia à minha mãe "o teu filho", mas devia ser por vergonha de se sentir associado a mim. Acho que o meu pai sempre me viu como um fracasso e secalhar tinha pulado de alegria se descobrisse que eu era filho de outro homem qualquer, independentemente do que isso realmente significaria. Acho que ele olhava para mim e se via a ele próprio. Acho que era por isso que sempre me detestou, e a minha mãe também. Olhava para mim e via-o a ele... não era possível gostar dele.
Mas nunca entendi nenhum dos dois. Depois do quase incêndio naquela casa e de gritos e discussões entre os meus pais sobre mim (como se eu não os pudesse ouvir) apercebi-me de que tinha acabado de destruír o meu único amigo. Num arrependimento enorme por me ter visto livre do Kent, tive um ataque de choro. E agora com quem ía falar?... O meu pai ainda veio espreitar mais uma vez à porta do meu quarto naquele dia. Apenas para me dizer "já viste o que fizeste? A tua mãe está de rastos! Vê lá se paras de chorar e se aprendes de vez!"
Chorei durante horas pela perda do meu amigo, chorei até ter caído no sono. Mas não adormeci antes de fazer uma promessa ao Kent que, tal como tantos outros segredos que lhe tinha contado, ficaria só entre nós: "para a próxima vai ser diferente, prometo." E foi a esse pensamento que me agarrei daí para a frente, desde aquele momento até ter saído de casa de vez 13 anos mais tarde para que pudesse aguentar com um sorriso na cara e alguma satisfação indiferente, o ambiente que os meus pais me proporcionaram
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